Fonte: Cronopis
Data da primeira publicação: Dezembro de 2007
[texto espanhol e traduções russa, alemã e inglesa]

Entrevista com Nick Bostrom e David Pearce

Dave e Nick são os co-fundadores da Associação Mundial Transumanista, uma organização não lucrativa que procura aumentar as capacidades humanas por meio da alta tecnologia.

ANDRÉS LOMEÑA: O transumanismo, ou o aperfeiçoamento humano, sugere o uso de novas tecnologias para aumentar as aptidões mentais e físicas, descartando alguns aspectos como a estupidez, o sofrimento, e por aí em diante. Vocês foram descritos como «tecno-utopistas» por críticos que escrevem sobre «alucinados do futuro». Na minha opinião, há algo muito pior do que o optimismo: o tecnopessimismo radical, dirigido por Paul Virilio, o falecido Baudrillard e outros pensadores. Por que razão há uma forte tensão entre a perspectiva optimista e a pessimista?

NICK BOSTROM: Não me recordo de qualquer ocasião em que me tenham classificado pessoalmente como «tecno-utopista», embora seja seguramente um termo que foi aplicado ao transumanismo por alguns críticos. Na verdade, há alguma justiça nesta crítica. O transumanismo é um movimento muito diverso e alguns indivíduos que se referem a si próprios como «transumanistas» poderiam justamente ser chamados «tecno-utopistas» no sentido de «aceitar incriticamente a perspectiva de que inevitavelmente a tecnologia em breve resolverá todos os grandes problemas.»

Não sei se o tecnopessimismo é melhor ou pior do que o tecno-utopismo. Parece-me que deveríamos tentar superar os preconceitos tendentes a uma ou outra direcção — tendentes a resultados positivos ou negativos — e atribuir probabilidades com base em indícios e discernimento honesto em vez de preconceitos ideológicos e temperamentais.

DAVID PEARCE: Será a nossa qualidade de vida nas sociedades tecnologicamente avançadas melhor do que a vida dos nossos ancestrais caçadores-colectores na savana africana? A resposta poderia parecer obviamente «sim». Os tecnopessimistas poderiam responder que os indícios que sugerem que estamos em média mais felizes são ténues — passando então a extrapolar em conformidade. Tal extrapolação é prematura. Estamos na véspera de uma transformação profunda da própria natureza humana. Teoricamente, podemos inclusive reajustar o círculo hedónico e tornar-nos constitutivamente mais felizes — relegando o pessimismo para a história. O tecnopessimismo pode por vezes ser útil quando encoraja uma reflexão mais profunda sobre consequências imprevistas das novas tecnologias, preparação para o pior resultado possível e melhor análise de riscos e ganhos. Mas se os humanos fossem todos realistas depressivos, ainda viveríamos em cavernas. Os transumanistas crêem que podemos superar as nossas limitações físicas, intelectuais, emocionais (e morais?) como seres humanos através do uso responsável da tecnologia.

Se há interesse em referi-lo, sou pessimista por temperamento. Mas creio (provisoriamente) que a tecnologia da informação e a biotecnologia produzirão biliões de anos de invencível bem-estar, muito mais rico do que qualquer coisa que se possa fazer hoje em dia.

A.L. : Há muitos medos e maior ignorância. A Wikipédia sistematiza todos os medos: impraticabilidade, o argumento de que se está a «fazer de Deus», o argumento da Fonte da Juventude, o argumento do Admirável Mundo Novo, o argumento de Frankenstein ou do Exterminador Implacável (baseado em Hora Final, de Martin Rees). Quais destas questões são medos saudáveis (compreensíveis) e quais não o são? Uma crítica comum habitual era a visão escatológica do transumanismo (como o marxismo e o cristianismo, por exemplo). Resumindo, como poderíamos lutar contra estes pontos de vista distópicos?

N.B. : Abordando distintamente cada caso particular, ou procurando identificar preconceitos que poderiam afectar os nossos juízos num âmbito vasto de casos. O medo não é necessariamente uma coisa má, desde que se dirija a algo que é realmente perigoso e resulte num esforço construtivo para reduzir o perigo. Por exemplo, faz todo o sentido preocupar-se com a ocorrência natural de pandemias como com a possibilidade de superescaravelhos produzidos por engenharia biológica. Mas recear ter a opção de atrasar a doença e a senilidade através de uma terapia de rejuvenescimento eficaz é perverso. Na verdade, não penso que haja muitas pessoas que tenham efectivamente medo de tal coisa, embora algumas possam manifestar oposição por razões ideológicas. Para uma ilustração de como se poderia tentar diagnosticar e remover um preconceito que afecte um juízo num âmbito de questões que se referem ao aperfeiçoamento, veja-se um ensaio sobre preconceitos estabelecidos (http://www.nickbostrom.com/ethics/statusquo.pdf), que escrevi juntamente com Toby Ord.

D.P. : Húbris / Fazer de Deus? O que poderia ser mais «divino» do que criar nova vida? Nem todas as culturas fizeram historicamente a conexão entre a actividade sexual e a reprodução; mas nós não dispomos de semelhante desculpa. Por um lado, condenamos os autores de programas informáticos maliciosos que divulgam código corrupto. Por outro lado, propagamos livremente o nosso próprio código corrupto ao longo das gerações — em especial, uma doença genética letal (envelhecimento) e uma predisposição para perturbações de ansiedade, depressão e outros estados mentais darwinistas desagradáveis. À medida que a medicina reprodutiva progride, o que tem de mal agir ao invés como pais responsáveis? Por que não planear a saúde genética e felicidade de longo prazo das gerações futuras?

Argumento do desprezo pela carne / argumento da Fonte da Juventude? O que poderia mostrar mais desprezo pela carne do que defender corpos darwinistas que decaem e morrem? À medida que a medicina genética amadurece, por que não conceber projectos para corpos perpetuamente jovens? Além disso, teremos em breve a oportunidade de explorar formas mais ricas de sensualidade; de magnificar o córtex somato-sensório; e de isolar a assinatura molecular do desejo sexual e amplificar os seus substratos por medida. Transcender a carne pode ser uma opção; não é uma obrigação.

Admirável Mundo Novo? Este argumento é mais difícil de rejeitar completamente. Mas a biotecnologia pode potencialmente dar poder ao cidadão individual em vez de ao estado. Por exemplo, aperfeiçoar o humor tende a aumentar a autonomia pessoal e a participação activa na sociedade. Conversamente, o mau humor está associado à subordinação e ao distanciamento social. O soma de Huxley foi erroneamente publicitado como uma «droga de prazer ideal». Será ultrapassado pela farmacologia verdadeiramente utopista.

Argumento da desumanização / argumento de Frankenstein? Sim, a tecnologia pode desumanizar; e a biotecnologia pode criar monstros. Porém, a biotecnologia pode também criar santos e anjos. De uma maneira menos poética, em breve seremos capazes de nos «humanizar» a nós próprios. Pois podemos aperfeiçoar biologicamente a nossa capacidade para a empatia — ou amplificando funcionalmente os nossos neurónios especulares, ou pelo uso de empatogénicos sintéticos pró-sociais, ou manipular geneticamente a libertação de oxitocina para promover a confiança social. Fá-lo-emos? Não sei.

O argumento do Exterminador Implacável? O bioterrorismo e a «gosma cinzenta» são talvez os cenários mais preocupantes. Mas nas próximas décadas é muitíssimo provável que tenhamos bases auto-sustentáveis na Lua e em Marte. Mesmo nos cenários mais apocalípticos, qualquer risco existencial à vida inteligente será assim fortemente diminuído. De uma perspectiva ética utilitarista, é crucial que os seres humanos sobrevivam para se tornarem pós-humanos. Pois somos a única espécie capaz de erradicar o sofrimento em toda a vida senciente. Somos também a única espécie suficientemente inteligente para propagar a felicidade inteligente em todo o universo acessível.

A.L. : Provavelmente, o problema mais importante é a escassez de informação. Na realidade, não sabemos muito sobre o transumanismo, excepto alguns artigos de Fukuyama (inicialmente optimistas e depois pessimistas). Gostaríamos de perguntar-lhe quais as conexões entre o transumanismo e outros tópicos. Por exemplo: o transumanismo e a religião: considera-se religioso? Há um transumanismo ateu ou agnóstico?

N.B. : Denominar-me-ia «agnóstico». Parece que os transumanistas são maioritariamente arreligiosos, mas há também transumanistas católicos, transumanistas mórmones, transumanistas budistas, etc.

D.P. : Penso que é difícil reconciliar o transumanismo e a religião revelada. Se queremos viver no paraíso, teremos nós próprios de o produzir. Se queremos a vida eterna, então teremos de reescrever o nosso código genético cheio de erros e tornarmo-nos divinos. «Possa tudo o que vive ser libertado do sofrimento», afirmou Gautama Buda. É um sentimento maravilhoso. Infelizmente, só as soluções de alta tecnologia podem erradicar o sofrimento do mundo vivo. A compaixão por si só não basta.

A.L. : Transumanismo e eugenia: Será que todos os transumanistas são eugenistas? Têm um programa político no que se refere a este tópico? Consideram-se um lobby das gerações futuras?

N.B. : A Associação Mundial Transumanista adoptou oficialmente uma declaração que exclui da organização todas as formas de eugenistas neonazis. (Isto deu-se em resposta a um incidente há alguns anos quando um ou dois desses trogloditas se procuraram infiltrar na AMT.) O transumanismo apoia os direitos reprodutivos entre outros direitos humanos. Tendemos a pensar que é melhor as decisões reprodutivas estarem nas mãos dos pais, acompanhados pelo seu médico, e dentro de directivas gerais determinadas pelo estado. Seria eticamente inaceitável, bem como potencialmente muito perigoso, que o estado impusesse uma fórmula unilinear sobre qual o tipo de pessoas que devem existir na geração seguinte.

Se eu fosse pai, consideraria ter o dever moral de tomar todas as medidas razoáveis para garantir que a criança que estaria prestes a trazer ao mundo iniciaria a sua vida com as melhores hipóteses possíveis de uma vida boa. Se uma mulher grávida pode melhorar o QI do seu filho tomando ácido fólico ou suplementos de colina, evitando o álcool, o tabaco e água contaminada com chumbo, creio que seria responsável da parte dela tomar essas medidas fáceis. Analogamente, se eu estivesse a utilizar a fertilização in vitro e houvesse um teste genético simples que poderia seleccionar o embrião com os melhores genes para a saúde e outras qualidades desejáveis, creio que seria negligente não usar o teste. Seria um inconveniente muito pequeno para um ganho potencialmente grande.

D.P. : Os transumanistas não são eugenistas em seja o que for que se assemelhe ao odioso sentido tradicional. Todavia, a humanidade está no limiar de uma revolução reprodutiva. Os futuros pais em breve receberão o poder de escolher os tipos de crianças que querem trazer ao mundo. É provável que o diagnóstico pré-implantação se torne rotina. Seguir-se-ão os genomas projectados. Na sua maioria, os pais desejarão ter filhos mais felizes, inteligentes, saudáveis. Em princípio, uma maioria de pessoas hoje provavelmente apoiariam o uso da medicina genética para impedir doenças como a fibrose cística. Por contraste, apenas uma minoria de pessoas actualmente favorecem as tecnologias de «aperfeiçoamento». Mas as tecnologias de aperfeiçoamento de hoje serão as terapias curativas de amanhã. Pelos padrões dos nossos sucessores, os humanos mortais parecerão por hipótese tragicamente doentes e disfuncionais. De momento pensamos que é moralmente aceitável transmitir aos nossos filhos a doença hereditária letal do envelhecimento — e uma predisposição para vários estados mentais feios (p. ex., ciúme, mau humor, ansiedade, ressentimento e solidão) adaptativos no ambiente ancestral. Porém a vida humana podia potencialmente ser muito mais rica. À medida que a tecnologia amadurece, por que não permutar a cruel roleta genética da selecção natural pela superfelicidade, superlongevidade e superinteligência pré-programadas? Crucialmente, esta transformação não precisa (e não deve) implicar a opressão de outras raças ou espécies. Transcender as nossas limitações biológicas implica transcender os preconceitos etnocêntricos e antropocêntricos dos nossos antepassados.
O nosso dilema real encontra-se mais à frente. Num mundo pós-envelhecimento, como reconciliamos os direitos reprodutivos individuais com a capacidade de sustentação finita do nosso planeta materno? Será que a pressão demográfica nos fará finalmente «rumar às estrelas»? Ou será que este cenário é apenas ficção científica?

A.L. : Transumanismo e imortalidade: Acreditam em transferência de mentes? Se a resposta é «sim»… suponho que se consideram dualistas, não? A propósito, penso que o romance de Greg Egan fala acerca de transferência de mentes, de uma maneira metafísica e interessante.

N.B. : Penso que a transferência poderia, na circunstância apropriada, preservar simultaneamente a consciência e a identidade pessoal. Mas não me denominaria «dualista». Penso que no presente a minha mente funciona sobre um tipo de computador de proteínas, e se exactamente os mesmos processos computacionais fossem implementados num computador de silicone creio que não notaria qualquer diferença.

D.P. : Não há qualquer razão científica por que não possamos reescrever o nosso próprio código genético e permanecer indefinidamente jovens. Num sentido, os pós-humanos podem tornar-se quase imortais — embora talvez esse discurso reflicta noções insustentáveis de identidade pessoal? Quando? Alguns transumanistas são optimistas. Citam o crescimento exponencial no poder dos computadores e prevêem que a vida sem envelhecimento será praticável em décadas. Espero que tenham razão. Infelizmente, receio que a reescrita genética e outras intervenções eficazes possam demorar séculos ou mais. Seja como for, os ensaios longitudinais bem controlados de terapias de antienvelhecimento humano serão um problema. Transferência? Aqui talvez haja maior fundamento para se ser cuidadoso. A tecnologia dominante de uma época fornece tipicamente a sua metáfora radical da mente. A nossa tecnologia dominante é o computador digital. Pelo que é natural imaginar se robotas orgânicos como nós nos poderíamos analisar, digitalizar e transferir para um suporte menos perecível. Infelizmente, não temos qualquer compreensão científica da existência da consciência, muito menos uma teoria rigorosa dos seus inumeráveis sabores. Tão-pouco pode a física clássica explicar como cem biliões de células cerebrais distintas gerar um campo experiencial unitário. Pessoalmente duvido de que um computador digital com uma construção clássica alguma vez sustentará consciência unificada. [Será que os computadores quânticos maduros serão supersencientes? Talvez.] Devo acrescentar que algumas pessoas muito inteligentes discordam. Sou um dualista? Não, penso que o mundo é exaustivamente descrito pelas equações da física matemática. Mas o que «instila fogo nas equações» não é a matéria tal como compreendida pela metafísica materialista. Greg Egan? Sim, é um escritor brilhante.

A.L. : Transumanismo e singularidade: A singularidade estará realmente próxima? Vernor Vinge está certo ou errado?

N.B. : Não sei. Nem alguém mais sabe. Para mim, isto significa que se deveria pensar em termos de uma distribuição probabilística sobre um âmbito vasto de possibilidades, incluindo a atribuição de alguma probabilidade intrivial à possibilidade de isto acontecer muito em breve, dentro de duas décadas; alguma probabilidade de que levará muito mais tempo; e alguma probabilidade de que nunca acontecerá. Podemos então ter uma discussão interessante sobre a forma exacta desta distribuição probabilística. Mas a menos que reconheçamos primeiro a incerteza em tais previsões, não iremos longe na nossa análise.

D.P. : O desenvolvimento de superinteligência transumana é presumivelmente inevitável em pelo menos algumas ramificações de baixa amplitude da função de onda universal. Próximo? Suponho que isso depende da sua concepção de proximidade. Deveria assustar-nos? Não se a inteligência super-humana implica uma maior capacidade de compreender compassivamente os outros seres sencientes. O Singularity Institute [http://www.singinst.org/] explora tais questões em profundidade.

O próprio Vinge fala em como podemos, «no futuro razoavelmente próximo, criar (ou tornarmo-nos) criaturas que ultrapassam os humanos em todas as dimensões intelectuais e criativas. Os acontecimentos para além deste acontecimento — chame-se-lhe a Singularidade Tecnológica — são tão inimagináveis para nós como a ópera para uma ténia». Vinge pode muito bem ter razão. Mas vale a pena relembrar que os humanos adeptos da ópera partilham algo importante em comum com as ténias, nomeadamente uma interacção funcional entre os nossos respectivos sistemas opióide e dopamínico. O eixo prazer-dor é o que faz que qualquer coisa importe. Sem nível hedónico, não há qualquer significado ou importância na existência. Não, não podemos sequer imaginar em que tipos de conceitos sofisticados as mentes pós-humanas se poderão comprazer alegremente — tanto quanto uma ténia pode ter conhecimento da ópera. Mas prevejo que os pós-humanos não serão apenas superinteligentes mas também supersencientes.

A.L. : O Imperativo Hedonista sugere a biologia molecular do Paraíso. Um mundo sem dor, mental ou física. David refuta as objecções que dizem: «A guerra, a violação, a fome, as epidemias, o infanticídio e maus tratos a menores existem desde tempos imemoriais. São completamente «naturais», quer de uma perspectiva história, transcultural ou sociobiológica». Entrevistei Gary Francione (sobre direitos dos animais) por correio e ele diz algo semelhante acerca do veganismo. Pelo que suponho que deveríamos ter em consideração esta perspectiva abolicionista, não?

A minha segunda questão aqui é: se alcançamos o paraíso biológico (esquecendo objecções como «a dor é necessária») … como viveremos? Quero dizer, então e os empregos, guerras, e por aí em diante? Este novo mundo parece-me quase inimaginável (A dor é totalmente eliminada? Porque a vida sem a sensação de dor parece problemática, como sucede na anidrose, com a insensibilidade congénita à dor).

N.B. : Sim, penso que deveríamos ter em conta a perspectiva abolicionista. E sim, o mundo que resultaria se o projecto abolicionista fosse eventualmente bem-sucedido é quase inimaginável. Para começar, podemos seguramente pressupor — considerando os obstáculos gargantuescos que teriam de ser superados para essa visão se tornar uma realidade — que a eliminação do sofrimento seria a única diferença entre esse novo mundo e o mundo presente. Muitas outras coisas teriam mudado também.

Evidentemente, na ausência da intervenção de uma superinteligência ou da completa destruição da biosfera (outra maneira pela qual o sofrimento na Terra poderia ser abolido), não vai acontecer da noite para o dia. Pelo que poderíamos obter uma ideia mais clara das questões envolvidas à medida que nos aproximamos gradualmente do objectivo.

D.P. : «Que livro poderia um capelão do diabo escrever sobre o trabalho desajeitado, esbanjador, inábil, inferior e horrivelmente cruel da natureza!» afirma Darwin. Contudo, e se a «natureza de dentes e garras vermelha» pudesse ser civilizada? E se os «parques naturais» pós-humanos pudessem ser isentos de crueldade? É tecnicamente praticável. Penso que qualquer ética compassiva — não só o budismo ou o utilitarismo — tem de procurar alargar o projecto abolicionista a todo o mundo vivo, não só ao nosso próprio grupo étnico ou espécie. Um compromisso com o bem-estar de toda a senciência foi redigido na Declaração Transumanista. [http://www.transhumanism.org/índex.php/WTA/declaration/] O que significa tal compromisso na prática? Será que alguma vez vamos parar de nos matarmos e comermos uns aos outros? Idealmente, o poder do argumento moral seria por si suficiente. Mais plausivelmente, só o advento de comida de viveiro geneticamente manipulada, deliciosa, barata e abundante pode estabelecer a base para um veganismo global. Crucialmente, a produção de «carne sem carne» é em potência indefinidamente escalonável. Todavia, se somos moralmente sérios, uma dieta isenta de crueldade é apenas o início. Um mundo vivo sem sofrimento implicará o uso de implantes contraceptivos subcutâneos em toda a espécie; rescrições genómicas; reprojectar os ecossistemas dos nossos parques naturais terrestres; a nano-robótica para gerir um ecossistema marinho reprojectado; e muito mais além disso. Isto representa um desafio computacional e de engenharia sério. Ver https://www.abolitionist.com para uma visão geral.

Dor física? Por que reagem os nossos robotas de silicone (etc.) a estímulos nocivos sem sentir sofrimento intenso no caso de serem danificados — ao passo que os seus análogos orgânicos feridos (normalmente) sofrem tão terrivelmente? Por agora, só podemos conjecturar. Mas há pelo menos duas soluções possíveis para as misérias da dor física na vida orgânica. Uma é transferir tudo o que é desagradável para próteses inteligentes — a solução «cyborg». A alternativa é projectar ligeiros decrementos sensíveis à informação em gradientes de bem-estar de contrário sublimes — ou seja, os análogos funcionais da dor sem as suas ferozes «sensações em bruto».

Como será a vida numa hipotética era pós-darwinista? É divertido especular. Mas por analogia, imagine-se se um especialista em dores crónicas hoje em dia começasse a pontificar aos seus pacientes sobre como deviam viver as suas vidas depois de terem sido curados. Por que o levaríamos a sério? Teoricamente, os humanos emocionalmente aperfeiçoados podiam conservar muito da nossa estrutura preferencial existente, simplesmente reajustando o círculo vicioso hedónico de maneira a todos levarmos vidas mais ricas em volta de um «nível hedónico pré-definido» elevado. Na prática, penso que todo o nosso esquema conceptual sofrerá também uma revolução. É provável que seja o que for de concreto que digamos hoje acerca de uma era futura de engenharia paradisíaca seja pueril na sua ingenuidade. Para ter uma ideia do que está reservado, procure talvez antes recordar a sua experiência culminante mais maravilhosa. Suspeito (mas não posso provar) que a vida pós-humana do dia-a-dia será muito melhor.

A.L. : Penso que o transumanismo é pouco familiar porque não podemos ler uma genealogia das suas ideias e pensadores. Suponho que o «utilitarismo negativo» é um bom ponto de partida para o David, mas não sei qual o ponto de partida do Nick. Não encontro muitas figuras cruciais como Hegel ou Aristóteles nas vossas abordagens; talvez estejam a tentar romper certos trilhos de conhecimento (quero dizer, a rejeitara numerosas pressuposições), talvez tenha de ler melhor o transumanismo recente? Ray Kurzweil, Marvin Minsky, Hans Moravec? Parece-me muito importante. Uma história do vosso movimento recente.

N.B. : Não há um único ponto de partida em que tudo tenha começado. O pensamento transumanista ganhou forma gradualmente, pelas contribuições de muitas mentes.

As minhas próprias perspectivas filosóficas não se baseiam em qualquer predecessor particular. Aprendo com muitos e sou inspirado por eles. Isto, por sinal, é a via comum na filosofia analítica contemporânea: tornou-se mais como uma ciência, com muitas pessoas a fazer contribuições parciais para problemas específicos.

D.P. : O transumanismo é um movimento extraordinariamente diverso. Para um maior pano de fundo, veja-se talvez a FAQ [Perguntas Frequentemente Colocadas] Transumanista. [http://www.transumanism.org/resources/faq.html] O transumanismo no sentido moderno do termo data na verdade do trabalho seminal de Max More e os seus colegas no Extropy Institute. A história do pensamento transumanista elaborada pelo Nick [http://www.nickbostrom.com/papers.pdf] é esclarecedora. Pessoalmente, citaria influências como as de Bertrand Russell, Peter Singer, Richard Dawkins e Alexander Shulgin — dos quais nem todos figuram proeminentemente no cânone transumanista.

A.L. : A propósito, vão fazer alguma comemoração pelo décimo aniversário da «Associação Mundial Transumanista»? Como se encontraram e quando decidiram fundar aquela organização não lucrativa? Quais as actividades correntes das vossas organizações?

N.B. : Suponho que deveríamos fazer algo para celebrar o décimo aniversário. (Tenho estado demasiado ocupado simplesmente a manter as coisas a funcionar e a dar continuidade à minha própria investigação para pensar neste assunto.)

Encontrámo-nos pela primeira vez quando eu era estudante de pós-graduação na London School of Economics. Tínhamo-nos correspondido um pouco por correio electrónico. O Dave metera na cabeça que eu era algum professor importante e provavelmente ficou desapontado quando se verificou que eu era apenas um humilde estudante de pós-graduação. Todavia, depois do nosso encontro, o Dave referiu-me no seu diário online como «um caçador da verdade em busca de bombons epistémicos», se a memória não me falha. Eu era muito enérgico nos primeiros anos, mas este velho cão de caça amoleceu com o tempo.

Hoje em dia, centro-me principalmente na minha investigação e em gerir o Instituto Futuro da Humanidade. Esta é uma associação investigativa interdisciplinar na Universidade de Oxford que procura estudar de uma maneira rigorosa questões gerais para a humanidade — uma missão absorvente. Gosto de procurar ajudar ocasionalmente com tarefas organizacionais e assistência transumanista, mas sou fundamentalmente um pensador, não um activista.

D.P. : Uma celebração? Veja-se o sítio Web da AMT para detalhes: http://www.transhumanism.org

Encontrei-me pela primeira vez com o Nick há mais de uma década. Ele tinha-me enviado por correio electrónico algumas objecções astutas ao manifesto abolicionista que eu carregara para https://www.hedweb.com. Com alguma dificuldade, o Nick convenceu-me de que eu era um transumanista (previ que ele seria o primeiro professor de transumanismo no mundo: desejavelmente o primeiro de muitos!). Por minha vez, chateei o Nick para arranjar um sítio Web. AMT entrou no seu período de crescimento explosivo só depois de o formidável bioeticista James Hughes (http://www.changesurfer.com/Hughes.html) ter concordado tornar-se Secretário. Por contraste, tenho uma tendência pouquíssimo transumanista para me esconder atrás do meu computador. Num mundo darwinista, os herbívoros tendem a ser tímidos — ou são comidos!

A minha própria investigação aqui na BLTC centra-se na psicofarmacologia clínica — em particular o tratamento de perturbações afectivas — porque penso que o alívio do sofrimento é moralmente o desafio mais urgente que enfrentamos. Nem todos concordariam; mas «a dor mais fácil de suportar é a de outrem». As drogas psicoterapêuticas são apenas soluções temporárias: a medicina pós-genómica será melhor. Mas a maioria das pessoas não querem saber como os seus descendentes podem gozar de superfelicidade vitalícia, juventude perpétua, abundância material ilimitada, superintelectos, liberdade morfológica, e por aí em diante. Querem saber como podem melhorar as suas vidas — e as vidas dos seus entes queridos — já.

A.L. : Se estamos a viver uma simulação… O que supõe para nós? Mudamos algo? Temos de acreditar na navalha de Ockham? Por falar nisto… o que pensam da «Física da Imortalidade» de Tipler?

N.B. : Então, isto refere-se a um ensaio académico que escrevi há alguns anos, que chamou bastante a atenção (ver http://www.simulation-argument.com para mais detalhes). Resumindo, não, não penso que a hipótese da simulação deveria mudar drasticamente a maneira como vivemos, embora seja intelectualmente interessante e possa ter algumas ramificações práticas subtis. Também gosto de aproveitar cada oportunidade para salientar que o argumento da simulação não mostra que vivemos numa simulação de computador, só que pelo menos uma de três proposições é verdadeira (não nos diz qual). Uma destas proposições é a hipótese da simulação.

D.P.: O modo como alguém se deveria comportar numa simulação supostamente depende da natureza dessa simulação. Assim, se você sonha e sabe que está a sonhar, então qualquer coisa é permissível. A auto-indulgência completa é moralmente aceitável desde que as pessoas no nosso mundo de sonho sejam apenas zombies. O mesmo se aplica quando se usa o software de realidade virtual do futuro — em modo de um jogador, pelo menos. Por contraste, se a Hipótese da Simulação [a distinguir do Argumento da Simulação do Nick, que está relacionado] é verdadeira, então as pessoas «simuladas» têm experiências reais. O sofrimento, por exemplo, não é menos real por ocorrer num supercomputador cósmico no decurso de uma simulação ancestral de um Superser. Na verdade, uma das razões pelas quais creio que vivemos numa «realidade rés-do-chão» é achar inconcebível que um Superser optasse por recriar — e fazer proliferar — os horrores do passado darwinista do qual emergiu. Infelizmente isto é mais uma expressão de incredulidade pessoal do que um argumento.

Navalha de Ockham? O Argumento da Simulação é interessante precisamente porque é tão frugal nas suas pressuposições. As suas premissas são muito amplamente partilhadas na filosofia académica e na comunidade científica.

O meu próprio sentido de como me comportar numa simulação tem mais raízes tradicionais na teoria da percepção. Acreditei durante muito tempo que cada um de nós vive numa simulação egocêntrica do mundo executada pela mente/cérebro. Como os zombies de cada simulação (lúcida) têm contrapartes sencientes no mundo real, deveriam ser tratados como se fossem reais. Não obstante, enquanto adolescente cheio de angústias, a minha aceitação inicial de uma teoria realista inferencial da percepção fez-me sentir como se tivesse sido condenado a prisão solitária para toda a vida. O sentido da solidão era indescritível. O realismo ingénuo é melhor para a nossa saúde mental.

A Física da Imortalidade? Se a teologia judeo-cristã é verdadeira, então o livro de Tipler é uma tentativa maravilhosamente hábil de mostrar como se poderia reconciliar o dogma religioso com a ciência natural. Mas duvido de que qualquer físico que não partilha as premissas cristãs de Tipler partilhe as suas conclusões.

A.L. : Admito não compreender de todo o princípio antrópico forte (ou qualquer princípio antrópico, sendo humilde). Poderiam explicar-no-lo de uma maneira compreensível? Que consequências tem para nós?

N.B. : O princípio antrópico foi interpretado e mal interpretado de muitas maneiras. Se remover todos os equívocos, há na realidade um núcleo sensato e importante, que é a injunção de ter em conta os efeitos de observação selectiva quando ou os nossos indícios ou as nossas hipóteses contêm informação indexical. Tenho um sítio Web que inclui algumas introduções: http://www.anthropic-principle.com.

D.P. : Todas as versões do princípio antrópico forte afirmam que o universo foi projectado, num certo sentido, para a existência humana. Não estou convencido. A nossa melhor teoria do mundo, a mecânica quântica, diz-nos que vivemos num multi-verso com um número inconcebivelmente imenso de ramificações quase clássicas. Na vasta maioria destas ramificações, as constantes da natureza estão «erradas». Tais ramificações não contêm observadores nem vida. Por contraste, uma (muito) pequena minoria de ramificações sustenta auto-replicadores que transportam informação, que evoluem por meio da selecção natural para se tornarem observadores. O observador ingénuo em qualquer ramificação semelhante pode perguntar-se por que razão as constantes físicas básicas — p. ex., as constantes de ligação que determinam o poder das quatro forças da natureza conhecidas — parecem tão improvavelmente ajustadas de uma maneira precisa para produzir vida, ou seres humanos, ou mesmo a existência do próprio observador. Ingenuamente, ele pode invocar Deus, que providencialmente deu um empurrão às leis da física para benefício — ou castigo — humano. Mas tais «coincidências antrópicas» são meramente um efeito de observação selectiva. O tipo de ramificação que podemos observar é restringido pelas condições necessárias para dar origem aos observadores. Os observadores, pela sua própria natureza, encontrar-se-ão a si próprios numa ramificação atípica do multi-verso como um todo.

A.L. : Quero fazer-lhes uma pergunta para terminar. O aperfeiçoamento humano e o destino pós-humano parecem orientados para a extinção da própria humanidade. A condição humana mata-se a si própria. O que pensa deste estranho paradoxo?

N.B. : Penso que temos de distinguir entre a «humanidade» e ter um tipo particular de sequência de ADN nas nossas células, tal como já a distinguimos de ser-se branco ou negro, homem ou mulher, jovem ou velho, homossexual ou heterossexual. Pode haver muitas formas de humanidade, inclusive novas formas que ainda não existem. E o objectivo não é permutar as pessoas actuais por um novo conjunto de pessoas «superiores». Ao invés, o objectivo é dar às pessoas a opção de continuarem a desenvolver-se de muitas maneiras diferentes, incluindo maneiras que diferem dos tipos de humanidade que temos hoje. Se quer uma palavra de ordem, poderia dizer que humanos é o que somos, humanitários é o que esperamos poder tornar-nos — e não tem de ser exactamente a mesma coisa para todos.

D.P. : Será que uma criança muito pequena se mata a si própria ao tornar-se num adulto? Será que uma crisálida se mata a si própria ao tornar-se uma bela borboleta?

A.L. : Algo que queiram acrescentar?

N.B. : Disponibilizo online esboços de muitas das minhas publicações, pelo que os leitores que queiram saber mais podem visitar a minha página principal: http://www.nickbostrom.com.

D.P. : Pode reparar em certas diferenças de ênfase entre o Nick e eu. Mas penso que ambos concordaríamos que o futuro da vida no universo é potencialmente glorioso para lá da compreensão humana.

N.B. : Concordamos de facto nisso. E isso é realmente importante.



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with many thanks to translator Vitor Guerreiro (see too 1, 2 and 3)


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